quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O+

Como tem vindo a ser hábito, também naquele momento ela dedicou-se em entregar tudo de si. Costuma pensar que se permite sentir demasiadamente a força da presença. Não encontra melhor expressão para definir aquela forma de ser inteiramente. Tantas vezes até chega a entregar a sua própria pele às circunstâncias. Esfola-se.

"Estou Presente."
E por essa razão, muitas vezes, ela esgota-se.

Foi o que sucedeu naquele quase Agosto de 42ºC em Lisboa.

Viveram poderosamente o parto. Vigorosos e assertivos. Ela e o seu filhinho, aquele bebé tão grande que cheirava a flores adocicadas já a seu peito.
Como qualquer fêmea ávida pela sua cria, beijou-o insanamente quando ele saiu de si. Beijou-o, como qualquer animal fareja finalmente um seu novo ser, fixando aquela nova matéria: um novo toque. Um novo odor.
"Então eras tu, meu amor, quem aqui já viva."

Minutos mais tarde, atrás de um curto cordão umbilical (quando se liga a alguém ela não permite grandes distâncias) nasceu a placenta. Agradeceu-lhe a dedicação e despediu-se. Foi neste instante que a morte estendeu-se pelo quarto de mãos demasiado ágeis e ensanguentadas. Apresentou-se distintivamente:
- "A hipotonia uterina consiste numa ineficaz contração do útero após a expulsão da placenta. Nesta condição, os vasos uterinos que uniam estes dois seres ficarão abertos, expostos, e suceder-se-á uma intensa perda de sangue materno."

Assim foi.
Sentiu uma tontura pulsar para fora de si uma torrente de sangue e esvaiu-se num forte cheiro a ferrugem, enquanto procurava uns braços em quem confiar o filho. Conheceu a hemorragia puerperal precoce duas horas depois de o filho nascer. Sem razões clínicas. Sem justificações lógicas senão aquelas que mais tarde construiu.

Ela esgotou-se.
Hemoglobina < 7 g/dl.
Leucócitos, eritrócitos e plaquetas. Plasma.

Depois de um prolongado desmaio, e de procurar sequiosamente a presença do bebé, vê chegar sangue fresco embalado a vácuo. Uma substância viscosa que integrou o sistema vascular de outro alguém. Que nutriu e oxigenou as suas células. Que participou da sua vida: ouviu a sua música, dançou. Emocionou-se. Lutou. Amou.
Aquele sangue que circulou por outras veias com o frenético pulsar de um coração (que ela espera apaixonado) entra na sua vida, gota a gota, através do seu braço.
Gota a gota. Gota a gota.
Durante toda a noite, gota a gota, 450 ml de cada vez.




Não há dia que ela viva sem reviver esta sua história.
Esta história que é tanto minha como de quem não sabe ser sua: quem doou-me o seu sangue.


Obrigada.

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