domingo, 30 de abril de 2017

Ciano-verde {A minha avó}

Quando morreste fechei-te as mãos em redor de um pedra turquesa. Confiei entre as tuas palmas transparentes uma pedrinha redonda, azul firmamento, polida com o mesmo cuidado com que protegias-me as mãos pequenas ao caminharmos pela rua. 
Nesse dia, para ti por fim sereno, guardei a pedrinha no casulo dos teus dedos paralisados que dormiam sobre um peito demasiado anónimo. Aquele que tinha sido o teu peito, mas onde já faltavas.

Nunca cheguei a contar-te. As turquesas que usavas ao pescoço eram pontos luzentes de magia num mundo violento demais a ambas. Demasiado ríspido e alheado à nossa subtileza. 
Nós éramos duas meninas, avó. Duas meninas de idades distintas que fantasiavam em contos sobre o mar, coleccionávamos búzios pelos reflexos que faziam à luz e segredávamos às nuvens. Nesse teu colar eu via ainda, junto à respiração do teu pescoço, o Sol e um par de estrelas douradas em órbita.

As pedras de Hator e Ísis, deusas cujo colo são o trono real do céu que é afinal o ventre imenso de uma deusa mãe maior, são também amuleto de Yemoja, rainha africana dos oceanos. 
E é aqui avó, por estes quatro cantos do Universo, no infinito azul levemente esverdeado das tuas pedras mágicas, que sei que cuidas ainda das minhas mãos. Sei que as resguardas tão bem como fazias, num aflito aperto, ao atravessarmos o Rossio. 
Estas mãos, avó, que são hoje ainda tão pequeninas.

terça-feira, 18 de abril de 2017

terra-musgo


Com a audácia das plantas de meia luz que se determinam a vencer paredes, ela viveu longos anos com um desafino nos pulmões. Um piado grosseiro que não debilitava porém as gavinhas que a sustentavam viva.
Ainda jovem, alguém contou-lhe que a sua falta de saúde surgia por não permitir que o sol vigorasse no interior do peito. Depois disso, ela veio a distinguir com nitidez o cheiro escorregadiço a musgo quando suspirava e o amarelo frio do mofo que se estendia para além dos seus ossos.

Nunca entendeu que esse alguém se referia a uma crónica ausência de paixão em si.



Bebia então pela manhã uma forte infusão de hera-estrela para a sua bronquite. Enquanto sentia o calor da bebida estalar-lhe a pele, imaginava a planta verdejar e cercar o seu pequeno tórax, esperançando que a hera respirasse por um sol, como ela jamais conseguiria fazer.